quinta-feira, 22 de março de 2012

O ESPREMEDOR DE CULHÕES


(Do livro – Crônicas de um Amor Louco - Charles Bukowski)
_______________
Danforth pendurou os corpos no varal, um a um, depois de passarem
pelo espremedor. Bagley, sentado perto dos telefones pergunta:
- Quantos tem?
- 19. Pelo jeito o dia vai ser bom.
- É, pô, tá com cara. Quantos colocamos ontem?
- 14.
- Legal, legal. Continuando assim, vai ser bom mesmo. O meu grilo é
que a coisa no Vietnã é bem capaz de parar - disse Bagley.
- Deixa de ser bobo, tem muita gente lucrando e dependendo dessa
guerra.
- Mas a Conferência de Paz em Paris...
- Você hoje não está bom, Bag. Quem é que não sabe que eles passam
o dia inteiro sentados, dando risada, recebendo grana pra não fazer
nada e depois indo à noite a tudo quanto é boate? Essa cambada tá
com a vida ganha. A vontade que têm de terminar a Conferência de
Paz é igual à nossa de liquidar com a guerra. Tá todo mundo
engordando, sem se arranhar. Uma verdadeira beleza e se
encontrarem uma forma de chegar por acaso a um acordo, sempre vão
aparecer outras. A terra tá cheia de lugares prontos pra explodir.
- É, acho que vivo me preocupando à toa.
Um dos três telefones da mesa tocou. Bagley atende.
- AGÊNCIA DE EMPREGOS SATISFAÇÃO GARANTIDA. Bagley, às suas
ordens - Fica escutando - É, sim, nós temos um ótimo contador.
Salário? 300 dólares nas duas primeiras semanas, 300 cada, bem
entendido. O pagamento das duas primeiras fica pra agência. Depois
vocês reduzem pra 50 por semana ou põe na rua. Se puserem na rua
depois das duas semanas, VOCÊS é que recebem cem dólares da
gente. Porquê? Ora, que diabo, então não está vendo que a idéia é
manter a rotatividade do negócio? Pura questão de psicologia, que
nem a figura do Papai Noel no Natal. Quando? Sim, vamos mandar
em seguida. Qual é o endereço? Ótimo, perfeito, daqui a pouco ele
está aí. Não se esqueça das condições. Ele leva o contrato. Tchau.
Bagley desliga. Cantarola baixinho, sublinha o endereço.
- Tira um do varal, Danforth. Um bem magro e cansado. Não vale a
pena mandar logo o melhor.
Danforth vai ao varal e retira os pregadores dos dedos de um bem
magro e cansado.
- traz cá. Como é o nome dele?
- Herman. Herman Telleman.
- Xi, que merda, não vai dar. Parece que ainda tem um pouco de
sangue. E o olho também não perdeu toda a cor... acho eu. Escuta
aqui, Danforth, essa sua máquina tá espremendo direito? Eu não quero
que sobre culhão nenhum, todas as resistências têm que sumir, tá
entendendo? Cuida da tua parte que eu cuido da minha.
- Alguns desses caras quando chegam aqui são duros de roer. E você
sabe muito bem que nem todos têm culhão. Não é sempre que dá pra
adivinhar.
- Tá legal, vamos ver este aqui. Herman. Ei filhote!
- Que foi paizinho? - Que me diz de um empreguinho legal?
- Ah, não porra!
- O quê? Não quer um empreguinho legal?
- A troco de que, merda? O meu vellho era de Jersey, trabalhou pra
burro a vida inteira e quando morreu a gente enterrou com todo o
dinheiro que tinha, sabe quanto era?
- Quanto?
- 15 cents. O saldo de uma vida desgraçada e infeliz.
- Mas você não gostaria de casar e ter filhos, casa própria, entrar pra
classe média? Comprar carro novo de 3 em 3 anos?
- Não quero nada com o batente, velhão, ninguém vai me botar em
gaiola de mola. Quero só me espraiar por ai. Tô me lixando pro resto.
- Danforth, passa esse sacana de novo no espremedor e aperta bem os
parafusos!
Danforth agarra o artigo pela nuca, mas não antes de Telleman berrar:
- Vai foder o cu da mãe!...
- E espreme bem TODO ESSE CULHÃO DELE. ATÉ QUE NÃO SOBRE
NADA! Tá ouvindo?
- Tá certo, já ouvi! - reponde Danforth. - merda, às vezes eu acho que
você ficou com a parte do osso mais fácil de roer!
- Deixa esse negócio de osso de lado! Espreme bem e tira o culhão
desse cara. O Nixon é capaz de acabar com a guerra...
- Lá vem você com essa bobagem de novo! Acho que tu não anda
dormindo direito, Bagley. Tem alguma coisa errada contigo.
- É, é sim. Tem razão. Insônia. Fico sempre pensando que a gente devia
estar preparando soldados! Me reviro na cama a noite inteira! Que
grande negócio não ia ser!
- Bag, a gente faz o que pode com o que a gente tem, mais nada.
- Tá certo, tá certo. Ele já passou pelo espremedor ?
- DUAS VEZES, já tirei o culhão todo. Você vai ver.
- Tá legal, traz correndo pra cá. Vamos dar uma olhada.
Danforth traz Herman Telleman de volta. Não resta duvida que está
diferente. A cor dos olhos sumiu por completo e o sorriso é totalmente
amarelo, uma beleza.
- Herman? - chama Bagley.
- Sim, chefe.
- O que é que está sentindo? Ou melhor, como se sente?
- Não sinto absolutamente nada chefe.
- Você gosta de tiras?
- Tiras não, chefe - polícias. Eles são vitimas da nossa maldade, embora
às vezes nos protejam atirando, prendendo, espancando e multando a
gente. Não existe essa história de que não há tira que preste aliás,
polícia, desculpe. Já imaginou se não houvesse polícia? A gente teria
que impor a lei com as nossas próprias mãos.
- E aí, o que ia acontecer?
- Nunca parei pra pensar, chefe.
- Ótimo. Acredita em Deus?
- Ah, claro que sim chefe. Em Deus, Pátria, Família, Tradição. E no
trabalho honesto.
- Puta que pariu!
- Como disse chefe?
- Não. Nada. Agora, escuta aqui, você gosta de fazer serão?
- Ah, claro que sim, chefe! Gostaria de trabalhar 7 dias por semana, se
possível. E de ter 2 empregos se pudesse.
- Por quê?
- Por causa do dinheiro, chefe. Pra comprar TV a cores, carro novo, dar
entrada pra casa própria, pijama de seda, 2 cachorros, barbeador
elétrico, seguro de vida, assistência médica, ah, tudo quanto é tipo de
seguro, educação escolar para os meus filhos, se eu tiver, porta
automática na garagem, roupas finas, sapatos de 45 dólares, câmeras,
relógio de pulso, anéis, lavadora automática, geladeira, poltronas e
camas novas, forração de carpete em todas as peças, donativos pra
igreja, aquecimento central e...
- Tá legal. Chega. Agora, quando é que pretende usar todos esses
troços?
- Não estou entendendo, chefe.
- Quero dizer, se você trabalhar dia e noite ainda fizer serão, que tempo
te sobra pra aproveitar todo esse luxo?
- Ah, esse dia há de chegar, chefe, ele há de chegar!
- E não acha que teus filhos um dia hão de crescer e julgar que você foi
um trouxa?
- Depois de ter me esfolado vivo por causa deles, chefe? Claro que não!
- Maravilha. Agora, só mais algumas perguntas.
- Pois não, chefe.
- Não acha que toda essa escravidão permanente é prejudicial pra saúde
e pro espírito, pra alma, se quiser...?
- Ah, pô, se eu não ficasse trabalhando o tempo todo, ia acabar sentado
por aí, bebendo, pintando quadros a óleo, fodendo, indo ao circo ou no
parque pra ver os patos. Coisas desse gênero.
- Não acha que ficar sentado no parque, olhando para os patos, pode
ser muito agradável?
- Mas desse jeito eu não ganho dinheiro, chefe.
- Tá legal, vá se foder.
- O que, chefe?
- Não, nada. Já sei de tudo o que precisava. OK, Dan, este aqui tá no
ponto. Parabéns. Dá o contrato, pega a assinatura dele, a letra é tão
miúda que nem vai conseguir ler. Acha que somos gente boa. Manda
correndo lá no endereço. O pessoal vai ficar encantado. Há meses que não arrumo melhor contador.
Danforth pega a assinatura, verifica os olhos de novo pra se certificar
se não tem mais vida, põe o contrato e o envelope na mão e
acompanha Herman até a porta, empurrando de leve pra descer a
escada. Bagley simplesmente se recosta na cadeira com um vasto
sorriso de satisfação e fica observando enquanto Danforth passa os 18
restantes pelo espremedor. Seria difícil dizer aonde vão parar todos
aqueles culhões, mas não há que negar, mais dia menos dia, todo homem deixa de ter culhões, os que deixam com maior facilidade
estão rotulados de "casados e com filhos" ou "idade superior a 40".
Assim recostado, enquanto Danforth vai espremendo um a um,
Bagley presta atenção nas conversas:
- É duro achar emprego para um homem da minha idade, ah puxa se é!
Outro canta:
- Oh, baby it's cold outside.
Outro:
- Já estou cansado dessa vida de bookmarker e cafetão, indo sempre
parar na cadeia. Preciso de segurança, segurança...
Outro:
- Tá certo, me diverti feito doido. Agora...
Outro:
- Não me especializei em coisa nenhuma. Todo homem devia se
especializar, não me especializei em nada, o que é que vou fazer?
Outro:
- Já estive em tudo quanto é país - graças ao exército - e sei como são
as coisas.
Outro:
- Se pudesse começar tudo de novo, ia ser dentista ou barbeiro.
Outro:
- Estão sempre desenvolvendo romances, contos e poemas que escrevo.
Que merda eu não posso ir pra Nova York e ficar puxando o saco de
tudo quanto é editor! Não há ninguém com mais talento do que eu,
mas sem pistolão não adianta! Se me contento com qualquer tipo de
trabalho indigno de mim, é por que sou gênio!
Outro:
- Tá vendo como sou bonito? Olha o meu nariz! As orelhas! O cabelo! A
pele! O meu modo de ser! Viu? Tá vendo como sou bonito? Tá vendo
bem? Sabe por que ninguém vai com a minha cara? É porque eu sou
bonito. É tudo inveja. Só por inveja. Pura e simplesmente.
O telefone toca de novo.
- AGÊNCIA DE EMPREGOS SATISFAÇÃO GARANTIDA. Bagley, às suas
ordens. Você o quê? Precisa de um mergulhador? Filha da mãe! Como?
Ah, desculpe. Lógico, evidente, temos dezenas de mergulhadores
desempregados. As duas primeiras semanas de pagamento ficam pra
agência. 500 semanais. Perigoso, sabe, muito arriscado mesmo.
Cracas, caranguejos, tudo mais... algas marinhas, sereias nas rochas.
Polvos. Amarras. Resfriados. É foda, sim. As 2 primeiras semanas de
salário são da agência. Se depois acharem que ele não serve, nós é
que pagamos 200 dólares pra vocês. Por quê? Por quê? Se um
passarinho vem e bota um ovo de ouro na sala da frente da tua casa,
você pergunta POR QUÊ? Pergunta? Vamos lhe mandar um
mergulhador dentro de 45 minutos! Qual o endereço? Ótimo, ótimo, ah
sim, ótimo, é perto do edifício Richfield. Sim, eu sei. 45 minutos.
Obrigado. Passe bem.
Bagley desliga. Já está exausto e o dia mal começou.
- Dan?
- Sim, boneca?
- Me traz um que tenha tipo de mergulhador. Bem barrigudo. Olhos
azuis, um chumaço de pelos no peito, calvície prematura, bastante
estóico, meio corcunda, míope e os primeiros prenúncios, ainda
ignorados, de câncer no esôfago. Qualquer mergulhador é assim. Todo mundo sabe como é. Agora traz um.
- Tá legal, seu cabeça de merda.
Bagley boceja. Danforth desprega um do varal. Traz o infeliz até a
mesa, onde fica parado, de pé. No rótulo se lê "Barney Anderson".
- Oi Barney - diz.
- Bag, onde é que eu estou? - pergunta Barney.
- Na AGÊNCIA SATISFAÇÃO GARANTIDA.
- Pô, estou pra ver dois safados com mais cara de vigaristas do que
vocês!
- Porra, Dan! Qual é?
- Passei quatro vezes pelo espremedor.
- Eu te respondi que tem alguns que são duros de roer!
- Isso é pura conversa, seu burro de merda!
- Quem é que é burro de merda?
- Vocês dois - responde Barney Anderson.
- Quero que você passe três vezes o rabo deste aí no espremedor. - diz
Bagley.
- Tá bem, tá certo, mas primeiro vamos fazer um teste.
- Tá legal. Por exemplo... pede pra este tal de Barney te dizer quais são
os ídolos dele.
- Bom, deixa eu ver... Claver, Dillinger, Che, Malcolm X, Gandhi, Jersey
Joe Walcott, "Grandma", Barker, Fidel Castro, Van Gogh, François
Villon, Hemingway.
- Viu, ele se identifica com todos os derrotados. Assim ele se sente bem.
Tá se preparando pra perder a jogada. Pode contar com a nossa
ajuda. Foi logrado com esse papo de alma e é desse modo que a gente
prende o rabo deles. Alma não existe. É pura cascata. Não existem
ídolos. É tudo onda. Não existe ninguém vitorioso na vida - é pura
cascata, papo furado. Não há santos e nem gênios - tudo não passa de
conversa mole pra boi dormir, conto da carochinha, só pro jogo
continuar. Cada homem se esforça pra sobreviver e ter sorte - se
puder. O resto não dá pra engolir.
- Tá bom, tá bom, já saquei o que você quer dizer! Mas, e o Fidel
Castro? Tava bem gordo na última foto que eu vi.
- Ele só tá durando por que os E.U.A. e a Rússia resolveram deixar o
cara no meio do fogo. Mas vamos supor que, de repente, coloquem as
cartas na mesa? Pra onde é que ele vai se virar? Rapaz, o cacife desse
cara é tão fraco que não dá pra pagar nem a entrada num puteiro
decadente do Egito.
- Vão tomar no cu, vocês dois! Eu gosto de quem eu quiser! - protesta
Barney Anderson.
- Barney, quando o cara não tem onde cair morto, e tá encurralado,
faminto e cansado - ele é capaz de chupar pica, mamica e até de
comer bosta pra poder continuar vivo; ou se conforma ou se suicida. A
raça humana não tá com nada, rapaz, não é flor que se cheire.
- Por isso nós vamos mudar tudo, cara. Aí é que tá o lance. Se já deu
pra chegar na lua, também dá pra limpar a cagada no penico. O mal é
que a gente andou perdendo tempo com o que não devia.
- Você tá doente, garotão. Meio barrigudinho. E começando a ficar
careca. Dan, bota aí o distinto em forma.
Danforth pega Barney Anderson, bate, torce e espreme, sem fazer
casos do grito, três vezes no espremedor, e depois traz de volta.
- Barney? - chama Bagley.
- Pronto, chefe!
- Quais são teus ídolos?
- George Washington, Bob Hope e Mae West, Richard Nixon, os ossos do
Clark Gable e toda a gente que vi na Disneylândia. Joe Louis, Dinah
Shore, Frank Sinatra, Babe Ruth, os Boinas Verdes, porra, todo o
exército e a marinha dos Estados Unidos e, principalmente, os
Fuzileiros Navais, e até o Tesouro Nacional, a CIA, o FBI, a United
Fruit, a patrulha rodoviária, o maldito departamento de policia de Los
Angeles em peso, e os tiras locais também, aliás disse "tiras" por
engano, quando queria dizer "polícia". Depois tem a Marlene Dietrich,
com aquela abertura no lado do vestido até em cima da coxa, ela já
deve andar perto dos 70, não é? Dançando lá em Las Vegas, fiquei de
pau duro, que mulher maravilhosa, a boa vida que leva aqui na
América e a estabilidade do dólar são capazes de manter eternamente
a juventude da gente, entendeu?
- Dan?
- Que é, Bag?
- Este aqui tá mais que no ponto! Mesmo pra um cara pouco sensível
como eu, deu pra ficar com ânsia de vomito. Faz ele assinar o
contratinho dele e manda lá no endereço. Eles vão adorar. Santo
deus, as coisas que a gente tem que fazer pra sobreviver! Às vezes
chego a odiar o próprio trabalho que faço. O que não convém, não é,
Dan?
- Claro que não, Bag. E assim que despachar esse cara de cu, eu tenho
um presentinho pra você - uma dose daquele velho Tônico, tão
gostoso.
- Ah, mas que bom..... qual é mesmo?
- Só meia volta na manivela do espremedor.
- O QUÊ?!
- Ah, não tem nada que se compare pra acabar com as tristezas ou
idéias inconvenientes. E outras coisas no gênero.
- Será que cura de verdade?
- É melhor que aspirina
- Tá legal, vê se livra do cara de cu.
Barney Anderson é despachado escada abaixo. Bagley levanta da
cadeira e vai ate o espremedor mais próximo.
- Essas coroas - a West, a Dietrich, ainda de tetas e cochas de fora,
porra, que coisa mais sem pé nem cabeça, já estavam nessa quando
eu era criança. Como é que pode?
- Tapeando . Esticando a pele, os músculos, por meio de cintas, de
talcos, de refletores, de forros de carne, enchimentos, cremes, palha e
esterco são capazes de deixar a avó da gente com cara de broto?
- A minha já morreu.
- Mesmo assim são capazes.
- É, é sim, acho que você tem razão.
Bagley vai para perto do espremedor.
- Só meia volta na manivela. Dá pra confiar em você?
- Tu não é meu sócio, Bag?
- Claro que sou, Dan.
- Há quanto tempo a gente trabalha junto?
- 25 anos.
- Então tá, quando eu digo MEIA VOLTA , É MEIA VOLTA mesmo.
- E o que é que eu faço?
- Enfia a mão no cilindro, mais nada. É que nem a máquina de lavar a
roupa.
- Ali dentro?
- É. Tá pronto? Oba!
- Ei, cara, não esquece. Só meia volta.
- Lógico, Bag, não confia em mim?
- Agora? Que remédio?
- Andei fodendo tua mulher escondido, sabia?
- Seu miserável filho da puta! Eu te mato!
Danforth deixa o espremedor ligado, senta atrás da mesa de Bagley,
acende um cigarro, e começa a cantar:
Lucky, lucky me,
I can live in luxury Because
I ve got a pocket full of dreams...
I got an empty purse,
But I own the universe,
BecauseI've got a pocket full of dreams...
Se levanta e se aproxima do espremedor e de Bagley
- Você falou meia volta - Bagley reclama - e já foi volta e meia.
- Não confia em mim?
- Mais do que nunca, não sei por que.
- E, no entanto, andei fodendo tua mulher escondido.
- Ah, acho que não tem importância. Já estou cansado de foder ela.
Todo homem cansa de foder sempre a mesma mulher.
- Mas o que eu quero é que você queira que eu foda a tua.
- Bem, eu pouco tô ligando, só não sei exatamente se quero que você
foda.
- Daqui a cinco minutos eu volto.
Danforth se afasta, senta na poltrona giratória de Bagley, põe os pés
em cima da mesa e fica esperando. Gosta de cantar e canta:
I got plenty of nuthin
And nuthin s plenty for me
I got the stars, I got the sun,
I got the shining sea...
Depois de fumar dois cigarros , volta pra junto da máquina.
- Bag, ando fodendo tua mulher escondido.
- Ah, eu quero que você foda, cara! É só o que eu quero! E sabe do que
mais?
- O quê?
- Acho até que gostaria de ver
- Lógico, que dúvida.
Danforth vai ao telefone e disca o número.
- Minnie? É, Dan. Vou até aí pra gente foder de novo. Bag? Ah, vai
junto. Ele quer ver. Não, ninguém tá bêbado aqui. Apenas resolvi
encerrar o expediente por hoje. Já fizemos tudo que tinha pra fazer.
Com o negócio entre Israel e os árabes, e toda essa guerra na África, ninguém mais precisa se preocupar. Biafra é uma palavra muito
bonita, mas como te disse, a gente está indo pra aí. Quero comer o teu
cu. Essas bochechas gordas que você tem, puta que pariu! Sou capaz
também de comer o Bag. Acho que as bochechas dele são maiores que a tua. Fica aí quietinha, paixão, que a gente tá a caminho!
Desliga. Outro telefone toca. Dan atende. - Vai te foder, seu sacana de
merda! Até a ponta dos teus mamilos fedem que nem bosta mole de
cachorro quando tem vento oeste.
Desliga e sorri.Vai até Bagley e tira ele do espremedor. Trancam a
porta do escritório e descem os degraus juntos. Quando chegam na
calçada, o sol está alto e de boa cara. Dá pra enxergar pela
transparência da saia justa das mulheres. E quase se adivinham os
ossos. Há morte e podridão por tudo quanto é lado. Estão em Los
Angeles, perto da esquina da 7º Avenida com a Broadway, o
cruzamento onde os mortos esnobam os mortos, sem saber por que.
Uma brincadeira que qualquer um é capaz de aprender, feito pular
corda, dissecar rãs, mijar na caixa de correspondência ou bater
punheta no cachorro de estimação, os dois cantam:
We got plenty a nuthin
And nuthin is plenty for we...
Chegaram de braço dado na garagem do subsolo, encontraram o
Cadillac 69 de Bag, entram no carro, cada um acende um charuto de
um dólar, Dan no volante, saem dali, quase atropelam um bêbado que
desce a calçada da Pershing Square, viram na direção oeste, rumo a
pista em alta velocidade, a liberdade ao Vietnã, ao exército, é foda, às
vezes extensões de gramado, estátuas nuas e vinho francês, a Beverly
Hills ...
Bagley se abaixa e abre a braguilha de Danforth, que continua
dirigindo.
Espero que deixe um pouco pra mulher dele, pensa Dan.
É de manhã e não faz muito calor em Los Angeles ou talvez já seja de
tarde. Verifica no relógio do painel de instrumentos - os ponteiros
marcam 11 e 37, a hora exata em que chega ao orgasmo. Aumenta a
velocidade do Cadillac. 130 km por hora. O asfalto desliza no solo
como os túmulos dos mortos. Liga a TV do painel, depois pega o
telefone e aí se lembra de fechar a braguilha.
- Minnie, eu amo você.
- Eu também te amo, Dan - retrucou ela - aquele vagabundo tá contigo?
- Tá bem do meu lado, acabou de encher a boca.
- Ah Dan, não desperdiça.
Ele solta uma gargalhada e desliga. Quase batem no crioulo que dirige
um carro-socorro. Não é negro coisa nenhuma, um tição e mais nada.
Não há melhor cidade no mundo pra quem está numa boa, e só uma
pior pra quem já dançou - o grande Danforth aumenta a velocidade
para 140. Um guarda de moto sorri quando o carro passa feito raio.
Talvez ligue depois para Bob, de noite. Bob é sempre tão engraçado.
Os 12 caras que escrevem para ele têm o dom de bolar grandes
piadas. E Bob tem a naturalidade de uma bosta de cavalo incrível.
Joga fora o charuto de um dólar, acende outro, aumenta a velocidade
do Cadillac para 150 e sai chispando no sol que nem flecha, os
negócios e a vida correm a mil maravilhas, e os pneus rodam em cima
dos mortos, dos moribundos e dos futuros defuntos.
ZUUUUUUUMMMMMMM!

Sugestão de breno sadock num comentário sobre   O conto 'A Brincadeira', de Anton Tchecov,   postagem do blog de Luís Nassif  (22/03/2012)

sábado, 17 de março de 2012

A bunda de Simone de Beauvoir



A bunda de Simone de Beauvoir

Por Paula Sibilia


Uma foto da escritora feminista nua, com alguns traços retocados digitalmente, causa polêmica em Paris

A despeito de sua esmagadora insistência em tecnicolor, o romance entre o presidente Nicolas Sarkozy e a cantora Carla Bruni não é o tema exclusivo das conversas e das agendas midiáticas neste inverno francês. Outro pequeno escândalo ameaça lhe fazer alguma sombra: nas comemorações pelos cem anos do nascimento de Simone de Beauvoir, verdadeiro totem da intelectualidade local, a bunda dessa escritora também acende calorosas discussões.
O furacão se desatou com a primeira edição de 2008 da revista "Le Nouvel Observateur". O tradicional semanário da “esquerda bem-pensante” estampou em sua capa uma imagem que alguns celebraram pela ousadia e muitos condenaram por sua canalhice. Sob uma manchete que gritava seu nome em vermelho e já errava um pouco no tom ao qualificá-la como "A escandalosa", aparecia uma foto da autora que em 1949 fundou um novo gênero com seu ensaio "O Segundo Sexo". Aqui, porém, a filósofa que morreu há mais de duas décadas (em 1986) mostra um de seus ângulos menos conhecidos: de costas, nua, arrumando o cabelo no espelho após sair da banheira.
O autor desse instantâneo atípico é o norte-americano Art Shay, amigo do escritor Nelson Algren, um dos amantes mais famosos da eterna companheira de Jean-Paul Sartre. Sua história remonta à longínqua Chicago dos anos 50. “Em sentido estrito, sim, esta fotografia foi ‘roubada’”, confessa agora o autor do clique, convocado para somar sua voz aos debates despertados pela súbita fama de sua velha obra, cujos negativos só foram resgatados após uma inundação em sua casa no Illinois quando a retratada já tinha morrido. Mas Shay esclarece que a imagem teria sido obtida de maneira ilícita apenas “no sentido em que as feministas o entendem”.
Era 1952, e Simone tinha 44 anos de idade. Como o apartamento alugado pelo boêmio Algren não possuía nem sequer um chuveiro, o jovem fotógrafo foi o encarregado de emprestar um lugar onde a convidada pudesse tomar um banho. Na época, ele trabalhava como estagiário na revista "Life" e não desgrudava de sua fiel câmera Leica; ainda mais naquela ocasião, pois o romancista tinha lhe advertido que sua amante francesa raramente fechava a porta do banheiro. Parece que ela ouviu os cliques, virou-se e chegou a exclamar, com ar despreocupado e até mesmo achando graça: “Garoto levado!”. Mas não fechou a porta, de acordo com o relato do aludido rapaz, e nem pediu para parar ou coisa parecida.
È claro que nenhum dos dois poderia ter imaginado, nem de longe, o bafafá que 66 anos mais tarde envolveria essas imagens furtadas desse modo quase inocente. Na época, elas não tinham “valor de mercado”, esclarece seu perpetrador, que portanto logo as esquecera e até chegou a acreditá-las perdidas durante cinco décadas.
Agora, o velho fotógrafo só se arrepende de uma coisa: seu amigo continuou a convidá-lo para passar os finais de semana em sua casa da praia, onde Madame costumava visitá-lo ao longo dos 20 anos de seu relacionamento. “Talvez teria podido fotografar os dois juntos, nus”, imagina com certa nostalgia o único sobrevivente dos três. Por isso, considerando o insólito valor que seus modestos cliques de folga atingiram neste novo século, e parafraseando uma cantora amiga de sua modelo involuntária, o artista americano debocha em francês: “Oui, je regrette” (sim, eu lamento).
Em seu favor, porém, avisa que não é nenhum improvisado. Adverte, inclusive, que seu nome cintila no âmbito do fotojornalismo por ter sido “o primeiro paparazzo a fotografar a máfia”. E mais: diz que sua filha advogada é “uma ardente feminista”, co-autora de um livro intitulado " Guia dos Direitos Legais para as Mulheres". Mesmo com esse digno currículo em seu haver, a primogênita de Art Shay não pensa que seu pai deva se desculpar por nada – e ele tampouco, é claro.
A verdade é que este fotógrafo de 86 anos comemora um sucesso considerável: sua obra reluz em dezenas de livros e museus. Entre esse vasto acervo, orgulha-se da imagem escolhida pelo semanário parisiense, que seria “uma das favoritas dos colecionadores”. Shay termina seu depoimento à imprensa francesa convidando para a sua retrospectiva, que será inaugurada daqui a três meses em uma galeria de Paris – e incluirá, bien sûr, o mais célebre de seus retratos.
Mas qual é o problema, então? Por que tanto alvoroço? A foto já era conhecida, vêm sendo exposta em diversos meios desde o ano 2000. Além disso, a imagem é bonita pelo enquadramento, pela luminosidade de seus tons cinza, pelo clima de época que sugere e pela espontaneidade na captura do instante. E mostra uma Simone de Beauvoir inusitadamente bela, corpórea, viva, sensual. Contudo, há algo neste episódio que gera um mal-estar difícil de silenciar.
Tanto em vida como após a morte de ambos, o casal que encarna o existencialismo já freqüentou as páginas desta revista: não apenas com seus próprios artigos, entrevistas e manifestos, mas também nas profusas citações motivadas pelas contendas das últimas décadas. Entretanto, pelo menos até hoje, sempre o fizeram pudicamente vestidos, e a bunda de Sartre jamais foi estampada na capa.
Mesmo neste confuso século XXI, no qual os costumes e os moralismos enrijecessem sem evitar (e nem contradizer) uma expansão dos códigos pornográficos, ainda é inconcebível que isso venha a acontecer algum dia. Por mais bonitas que fossem a foto e a bunda do filósofo em questão, dificilmente iriam ilustrar a capa desta publicação – ou mesmo de qualquer outra. Isso é válido para Jean-Paul Sartre, mas também para qualquer outro escritor ou pensador que conjugue seu nome em masculino.
Essa constatação evidencia, aos gritos, uma verdade que teima em ser ignorada: as lutas feministas pela igualdade não ficaram tão obsoletas como pode parecer, e a obra de Simone de Beauvoir talvez não deveria estar tão fora de moda como insinua o vulgar recurso à sua bunda nas comemorações do seu centenário. No canto superior direito da famigerada capa de janeiro, inclusive, o rosto de uma Benazir Bhutto muito bem vestida ilustra outra manchete de máxima atualidade: "Paquistão: o país de todos os perigos".
“Eu posso entender a utilização do PhotoShop para corrigir a forma das pernas”, escreveu Art Shay no site da revista francesa. O fotógrafo reconhecia, assim, “a necessidade de retocar as imagens para publicá-las em uma capa”, embora não deixasse de frisar que “isso nada acrescenta à graça do original, muito pelo contrário”.
Muitos concordam: a foto era mais bonita antes dos retoques. Porém, a intervenção digital não teria nada de extraordinário; hoje é muito habitual, faz parte das regras básicas da mídia e decorre, provavelmente, da influência publicitária que permeia todas as imagens e todos os discursos. Além, é claro, do tácito dever de adaptar os corpos femininos aos estritos padrões de beleza que vigoram na atualidade: afinando as silhuetas, suavizando os contornos, alisando as rugosidades e polindo todas as “impurezas”.
O bisturi digital é colocado ao serviço de um pudor "clean" e "cool", que parece temer o realismo da matéria sem negar suas filiações com as estéticas edulcoradas (lisas e hipócritas) da publicidade e da pornografia.
Eis alguns dos procedimentos aos quais a foto foi submetida, de acordo com um especialista: aclaramento da parte superior do corpo, sobretudo dos braços, para torná-los “mais fluidos”.
Além disso, foram eliminadas “as rugas nas costas e umas manchas que parecem ser sardas”. Já o alisamento da textura e a iluminação da parte inferior do corpo não teriam permitido apenas torná-lo mais visível, mas também “mitigar um pouco a abundância dos quadris, das coxas e das pernas”. Ademais, a borracha digital ajudou a aprimorar o visual do banheiro carente de luxos, acrescentando brilho às paredes e eliminando detalhes pouco nobres como o vaso sanitário e o rolo de papel higiênico.
“Se a mesma fotografia não tivesse sido retocada, dir-se-ia que é degradante para Simone de Beauvoir”, desafia uma das vozes do debate. “Mais do que o retoque, é a impudicícia da foto o que choca”, diz outro, remetendo ao fato de o clique não ter sido consentido, e muito menos a sua publicação. O que mais se questionou, porém, foi a tática miserável de mostrar o traseiro de uma filósofa feminista para avivar as discussões a respeito da sua obra – nem que seja de forma marcadamente tangencial, como está sendo o caso.
Cada época tem suas próprias misérias, e provavelmente também tenha os debates que merece. Alguns lembram, por exemplo, que três anos atrás, nas comemorações do centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre, foi ele quem sofreu as censuras do PhotoShop. É claro que, neste caso, os imperativos do apagamento não visaram os eventuais relevos pouco harmoniosos do corpo nu do filósofo, porém outro atributo igualmente perturbador para a moral contemporânea: seu cigarro.
A fim de promover uma exposição dedicada ao escritor, a Biblioteca Nacional de Paris ornou seu prédio e o catálogo da mostra com uma bela foto de 1946, na qual Sartre aparecia fumando – como sempre, aliás. Mas os programadores visuais não resistiram, e resolveram aplicar as boas lições do “sanitariamente correto” e da atmosfera higienista dos tempos pós-modernos, eliminando o cigarro e deslanchando as polêmicas de rigor.
Ainda sobre o clima de época e a sutil tarefa de revisionismo histórico que tecem as mídias, um leitor dizia a respeito do artigo do "Nouvel Observateur" que “não ensina nada a quem já conhece Simone de Beauvoir; e para aqueles que não a conhecem, ela fica reduzida a uma sorte de Paris Hilton dos anos 50”. Em definitiva, tanto o nu da capa como a opção de focalizar “revelações escandalosas” sobre a vida da escritora na hora de homenageá-la, em vez de sublinhar sua obra e suas ações políticas, foi visto como uma estratégia de marketing à qual não faltaram os típicos ingredientes patriarcais.
Pois é impossível não fazer a referência: esta senhora cuja nudez conseguiu se destacar nas bancas de jornais saturadas de corpos femininos em exposição e à venda, é tida como uma relíquia do século XX, uma espécie de fóssil do feminismo em sua época de glória. Ainda hoje, tanto sua extensa obra escrita como a agitada militância que marcaram sua vida, fazem parte de qualquer história dos combates pela “liberação da mulher”.
Se na década de 1940 ela bramava contra o mandato da maternidade como uma forma sinistra de “subordinação à espécie”, o que teria pensado da exibição de sua própria bunda retocada nos palcos midiáticos do terceiro milênio?
Na contramão das críticas, uma jornalista canadense celebrava a eleição da imagem como “uma mistura das vaporosas ninfas pré-púberes de David Hamilton e as recentes publicidades da Dove”, aliando um efeito esfumaçado ao “realismo sem PhotoShop”. Mesmo se logo se soube que essa falta de truques digitais era apenas ilusória, é possível retomar o fio da questão: porque não mostrar o corpo (belo e real) de uma mulher que consagrou boa parte de sua obra e sua vida a libertar a feminilidade de todas suas amarras?
A inesperada voluptuosidade da foto teria colaborado nessa pugna histórica, soprando uma brisa cálida na imagem que consagrou Madame de Beauvoir como uma intelectual fria e áspera, pura inteligência incorpórea e severidade ideológica encasquetada em um turbante. O argumento parece válido, especialmente no meio do circo-Sarko que concentra as atenções da irradiação midiática e não deixa muito espaço para outros rebuliços.
A comparação pode ser frutífera, pois a ex-modelo com a qual o presidente francês não cessa de se mostrar também é bela e quase quarentona, e a imprensa tem publicado várias imagens de seu corpo desprovido de roupas. Contudo, há pelo menos uma diferença importante: todas essas fotos foram consentidas, claramente posadas e orquestradas, e muito, muito bem pagas por empresas como Guess, Armani e Vogue.
Eis uma das arestas mais instigantes do caso, pois é claro que todas essas fotografias também foram convenientemente retocadas pelos melhores especialistas do ramo, antes de serem divulgadas em capas de revistas e vitrines afins.
A bunda de Carla Bruni é uma de suas principais e mais reconhecidas virtudes, e como tal já foi fartamente clicada de diversos ângulos e nas mais variadas posições. Ela própria se ocupou de explorá-la de modo profissional, e tais empreendimentos lhe renderam bons lucros, além da celebridade nas passarelas da moda, nas páginas mais brilhosas dos jornais e nas telas da televisão. Pelo menos, antes de correr o riso de “ter que precisar do PhotoShop” e se dedicar, com idêntico sucesso, ao mercado musical – e, logo depois, aos affairespresidenciais.
Simone de Beauvoir também recebeu elogios por “conservar-se bem” após os 40 anos de idade, mas a bunda da escritora era completamente alheia à sua fama... Pelo menos até agora, quando ameaça se tornar um de seus atributos mais célebres. “Para quando as fotos de Marguerite Duras, Nathalie Sarraute e Marguerite Yourcenar em biquíni?”, perguntou um leitor revoltado.
As brigas feministas obtiveram grandes conquistas nas últimas décadas do século XX. As normas sociais se flexibilizaram, ampliando as liberdades de ação e escolha, e as mulheres ganharam o direito à autonomia individual. Pelo visto, porém, houve que pagar um preço por tudo isso: junto com o afrouxamento das represas, aumentaram incrivelmente as exigências na padronização do aspecto físico.
As reviravoltas socioculturais e as vitórias políticas não desenham apenas progressos lineares. Se, por um lado, tornaram-se permeáveis certos limites que antes eram intransponíveis; por outro lado, os requisitos da “boa aparência” se estenderam para abarcar um segmento crescente da população. E se tornaram rigorosos até a asfixia. Não por acaso, uma das principais representantes do feminismo contemporâneo, Naomi Wolf, denunciou o “mito da beleza” como o grande inimigo atual da emancipação das mulheres.
“O que se escondia realmente sob o austero turbante?”, pergunta com certa insídia o "Nouvel Observateur", sugerindo uma resposta no perfil arrebatado pela porta entreaberta do banheiro. Por isso alçaram suas vozes as ex-colegas da associação que ela fundou várias décadas atrás, declarando que “essa foto roubada à sua intimidade não ilustra em nada os escritos, a filosofia, o feminismo e a personalidade de Simone de Beauvoir”. Para elas, o gesto só demonstra “a vontade de instrumentalizar o corpo das mulheres para fins puramente comerciais”. Outro grupo feminista apelidou a revista de "Neo Voyeur", e exigiu que o diretor se desculpasse, ou então que ele próprio mostrasse as nádegas na próxima capa.
“Não se deve acreditar que bastará modificar sua condição econômica para que a mulher se transforme”, escrevia Simone de Beauvoir naquele ensaio seminal de 1949. Embora isso fosse fundamental, a “nova mulher” só conseguiria surgir quando fossem assimiladas “as conseqüências morais, sociais e culturais” que tamanho movimento anunciava e exigia. Por isso, as mulheres daqueles tempos estavam “dilaceradas entre o passado e o porvir”. Quando sua imagem foi clicada naquele banheiro de Chicago, a filósofa pensava que a mulher devia “fazer-se uma pele nova e criar suas próprias roupas”, mas essa nova protagonista da história só seria capaz de florescer “graças a uma evolução coletiva”.
Deveria ser no mínimo inquietante, portanto, já bem adentrado um século XXI não mais preocupado pelas injustiças sexistas e outras batalhas aparentemente vetustas, que o grande debate suscitado nas efemérides desta autora não remeta às suas reflexões. Longe daquela sisudez, agora o centro de todas as atenções é sua bunda, e o grande dilema já não parece ser se os ovários condenaram ou não suas portadoras a “viver eternamente de joelhos”, mas este outro: será mesmo que ela tinha celulite?

Paula Sibilia
É professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF). Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ e em Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ, é autora do livro "O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais".