segunda-feira, 23 de abril de 2012

CONTA TUCANO


Esta matéria, CONTA TUCANO, foi publicada na revista ISTOÉ, edição 1741, de 12 de fevereiro de 2003. Amaury Ribeiro Jr é autor do livro A PRIVATARIA TUCANA, lançado em dezembro de 2011, em que denuncia José Serra e sua filha Verônica ,entre outros, por atos de corrupção nas privatizações do governo FHC.

Investigações revelam que o ex-caixa de campanha do PSDB movimentou US$ 56 milhões por intermédio de contas no Banestado dos EUA

Amaury Ribeiro Jr. de Foz do Iguaçu, Sônia Filgueiras e Weiller Diniz


Documentos a que ISTOÉ teve acesso começam a esclarecer por que o laudo de exame financeiro nº 675/2002, elaborado pelos peritos criminais da PF Renato Rodrigues Barbosa, Eurico Montenegro e Emanuel Coelho, ficou engavetado nos últimos seis meses do governo FHC, quando a instituição era comandada por Agílio Monteiro e Itanor Carneiro. Nas 1.057 páginas que detalham todas as remessas feitas por doleiros por intermédio da agência do banco Banestado em Nova York está documentado o caminho que o caixa de campanha de FHC e do então candidato José Serra, Ricardo Sérgio Oliveira, usou para enviar US$ 56 milhões ao Exterior entre 1996 e 1997.

O laudo dos peritos mostra que, nas suas operações, o tesoureiro utilizava o doleiro Alberto Youssef, também contratado por Fernandinho Beira-Mar para remeter dinheiro sujo do narcotráfico para o Exterior. Os peritos descobriram que todo o dinheiro enviado por Ricardo Sérgio ia parar na camuflada conta número 310035, no banco Chase Manhattan também em Nova York (hoje JP Morgan Chase), batizada com o intrigante nome “Tucano”. De acordo com documentos obtidos por ISTOÉ, em apenas dois dias – 15 e 16 de outubro de 1996 – a Tucano recebeu US$ 1,5 milhão. A papelada reunida pelos peritos indica que o nome dado à conta não é uma casualidade.

Os dois responsáveis pela administração da dinheirama, segundo a perícia, são figurinhas carimbadas nos principais escândalos envolvendo o processo de privatização das teles e auxiliares diretos de Ricardo Sérgio: João Bosco Madeiro da Costa, ex-diretor da Previ (o fundo de pensão do Banco do Brasil) e ex-assessor do caixa tucano na diretoria internacional do BB, e o advogado americano David Spencer. A perícia revela ainda que Spencer é procurador de Ricardo Sérgio em vários paraísos fiscais. Ao perseguir a trilha do dinheiro, os peritos descobriram que os milhões de Ricardo Sérgio deixavam o País por intermédio de uma rede de laranjas paraguaios e uruguaios contratados por Youssef e eram depositados na conta 1461-9, na agência do Banestado em Nova York antes de pousar na emplumada Tucano, que contava com uma proteção especial para dificultar sua localização. Ela estava registrada dentro de outra conta no Chase em nome da empresa Beacon Hill Service Corporation. De lá, o dinheiro era distribuído para contas de Ricardo Sérgio e de João Bosco em paraísos fiscais no Caribe.

A perícia traz outras provas contundentes. A PF conseguiu comprovar que parte do dinheiro enviado por intermédio do Banestado retornou ao Brasil para concretizar negócios desse mesmo grupo. Segundo o laudo, o dinheiro voltava embarcado em uma conta-ônibus junto com recursos de várias offshores (empresas em paraísos fiscais com proprietários sigilosos) operada pelo próprio João Bosco.

Os peritos conseguiram, por exemplo, identificar o retorno de US$ 2 milhões utilizados para comprar um apartamento de luxo no Rio de Janeiro em nome da Rio Trading, uma empresa instalada nas Ilhas Virgens Britânicas. Foram rastreados também imóveis em nome da Antar, sediada no mesmo paraíso, em nome de Ronaldo de Souza, que, segundo a PF, é sócio, procurador e testa-de-ferro de Ricardo Sérgio.
Pelas características dos depósitos, que eram frequentes, suspeita-se que, por esse mesmo duto de lavagem, também passaram contribuições de campanha. Além disso, Youssef tinha em sua carteira principalmente dois tipos de clientes: narcotraficantes e políticos. O laudo concluiu ainda que Ricardo Sérgio, enquanto ocupava o cargo de diretor internacional do BB, ajudou a montar o esquema bancário que operava com dinheiro de doleiros na fronteira, depois transferido para a agência nova-iorquina do Banestado.

Os documentos anexados ao laudo provam o envolvimento do advogado e procurador de Ricardo Sérgio, David Spencer, na abertura e movimentação da conta 1461-9, em nome da empresa June International Corporation. Um ofício do gerente do Banestado, Ercio Santos, encaminhado ao doleiro Youssef em 20 de agosto de 1996, atribui a Spencer a responsabilidade pela abertura da conta. “Segue cópia dos documentos referentes à abertura da June, em 8 de agosto de 1996. Recebemos hoje do David Spencer”, diz a primeira linha da correspondência na qual Ercio informa Youssef a respeito dos procedimentos para movimentação da conta. Na carta, Youssef é tratado intimamente por “Beto” e, ao se despedir, o gerente manda “um grande abraço”.

Ercio Santos sabia que mexia com dinheiro sujo. Informa, no documento, que preferiu não enviar selo da June por malote para não chamar a atenção. O selo, uma espécie de carimbo metálico, traz a identificação da empresa no paraíso fiscal onde foi instalada. A perícia comprovou também que, além do dinheiro do tucanato, Spencer ajudou a lavar recursos desviados do Banco Noroeste e do Nacional. Casado com uma brasileira, o americano conheceu Ricardo Sérgio no Brasil quando o ex-diretor do BB ocupava um cargo de direção no Citibank. Por falar português fluentemente, tornou-se advogado de banqueiros brasileiros no Exterior.

Como procurador de Ricardo Sérgio, conforme o relatório, Spencer abriu em 1989 a empresa Andover International Corporation nas Ilhas Virgens Britânicas. Spencer – que era também tabelião em Nova York – tinha respaldo legal para fechar as compras de imóveis no Brasil em nome das empresas offshore de Ricardo Sérgio e sua turma, mantendo os nomes dos verdadeiros donos em sigilo. Em uma dessas operações em 1989, por exemplo, Spencer lavrou uma procuração em nome do engenheiro Roberto Visneviski, outro sócio do tesoureiro tucano, para representar a empresa Andover na compra de um conjunto de salas na avenida Paulista, avaliado em R$ 1 milhão.

Para especialistas em lavagem de dinheiro, a operação é suspeita porque Visneviski assina duas vezes a transação: como vendedor e como comprador. “Obviamente, a Andover é do próprio Ricardo Sérgio. Foi uma operação clássica de internação de dinheiro”, avalia o jurista Heleno Torres, um especialista na investigação de operações de lavagem. Essa é apenas uma das 137 contas que já estão periciadas nos inquéritos. Por elas trafegaram US$ 30 bilhões. A polícia calcula que mais de 90% dessa montanha de dinheiro é ilegal, mais da metade resultado de sonegação de impostos através de caixa 2.

Reação – As denúncias publicadas na última edição de ISTOÉ que revelaram a sangria via Banestado caíram como uma bomba dentro do governo. Já no sábado 1º, um assessor direto do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, procurou o diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, pedindo informações sobre o laudo. Depois de conversar com o delegado Antônio Carlos Carvalho de Souza, atual responsável pelo caso, e com os peritos que trabalharam no escândalo, Lacerda comandou o reagrupamento de todos os policiais que já participaram da operação. Na quinta-feira 6, o chefe da PF reuniu a equipe e determinou a criação de uma força-tarefa da PF em parceria com o Ministério Público e com a Justiça.

Além de Carvalho, o delegado José Francisco Castilho Neto e os peritos Eurico Montenegro e Renato Rodrigues, que buscaram junto ao FBI e organizaram toda a documentação existente hoje no Brasil, estão de volta às investigações. Os três haviam sido colocados na geladeira durante a administração tucana na PF. “É o maior caso de evasão de divisas que eu conheço”, admitiu Lacerda na quinta-feira 6. “Vamos investigar tudo e não cederemos a pressões de qualquer natureza”, adverte o ministro Márcio Thomaz Bastos, antecipando-se a eventuais novos nomes que o dossiê-bomba da PF venha a revelar.

O grupo, reforçado por dois escrivães, voltará aos EUA nas próximas semanas para buscar os documentos que trazem as movimentações bancárias no biênio 1998-1999. Até agora, o trabalho dos peritos foi um exercício de abnegação. “O número de peritos é pequeno para o volume de informações que está sendo investigado”, diz o presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, Roosevelt Júnior. A divulgação do laudo também provocou uma corrida de procuradores que investigam separadamente casos de lavagem em vários Estados.

O procurador Guilherme Schelb, que apura outros casos de lavagem, pediu o bloqueio das três contas suíças do contrabandista e traficante foragido João Arcanjo Ribeiro. O procurador Luís Francisco de Souza, que rastreia os passos de Ricardo Sérgio, também quer ter acesso aos laudos produzidos pela PF. O cearense José Gerin não perdeu tempo. Desembarcou em Foz do Iguaçu esta semana para buscar detalhes sobre a quadrilha de doleiros que opera na região Nordeste, entre eles Wilson Roberto Landim, preso há duas semanas, que, pelos documentos, remeteu para o Exterior quase US$ 1 milhão em apenas seis meses.

OS BONS COMPANHEIROS

Principal articulador da formação dos consórcios que disputaram o leilão das empresas de telecomunicações, o ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira, saiu das sombras do tucanato ao ser captado num grampo do BNDES em que dizia ao ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros que iria conceder uma carta de fiança ao consórcio coordenado pelo Banco Opportunity. “Estamos agindo no limite da irresponsabilidade”, disse Ricardo Sérgio no grampo. Depois da revelação, Ricardo Sérgio passou a sofrer uma série de investigações no MP e na PF. Acusado de receber propina de empresas que participaram da privatização, Ricardo Sérgio está sendo investigado também por enriquecimento ilícito.

Ao assumir o cargo em 1994, convidou para chefe de gabinete o seu fiel escudeiro João Bosco Madeiro da Costa. Por indicação do ex-diretor do BB, Madeiro foi posteriormente para o cargo de diretor de investimentos da Previ, o milionário fundo de pensão do BB que participa do controle acionário da maior parte das teles privatizadas. Relatórios da Secretaria de Previdência Complementar, do Ministério da Previdência, revelaram que Madeiro centralizava todo o poder de negociação do fundo com grandes empresas. Segundo o Ministério Público, Madeiro também é suspeito de enriquecimento ilícito.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A religião contra o Estado


Tulio Vianna

A religião é a política realizada em nome de Deus. O líder religioso, assim como qualquer líder político, pretende governar o maior número de pessoas possível. Um governo que se faz não por leis, mas por dogmas.
O monoteísmo é autoritário na sua essência. Nunca houve plebiscitos e nem mesmo reuniões com representantes eleitos pelo povo para criar os dogmas de uma religião. Eles são ditados de cima para baixo, por alguém que fala em nome do próprio Deus e, portanto, é incontestável, mesmo pela vontade da maioria.
Como os líderes religiosos não dispõem, nos dias de hoje, de um braço armado para fazer valer suas leis pela força, precisam convencer seus governados a se sujeitarem às suas normas pelo proselitismo. E mais: precisam convencer também aqueles que não se sujeitam àquelas normas, ao menos a respeitá-las.
A fé é a mais autoritária das ideologias políticas já inventadas. Um instrumento político quase perfeito que permite ditar normas unilateralmente, governar sem a necessidade de armas e, ainda por cima, blindar-se de críticas em nome da tolerância religiosa.
Como em toda ideologia, há aqueles que acreditam piamente nela e lutam para vê-la concretizada e há também aqueles que simplesmente a tomam como pretexto para satisfazer seus interesses pessoais. Creiam ou não em sua ideologia e em seus deuses, todos agem politicamente no sentido de agregar cada vez mais um número maior de seguidores e de acumular riquezas para sustentar a expansão de sua ideologia e de seu poder político.
E não há nada de errado, por si só, em tentar expandir uma religião ou uma ideologia, acumulando patrimônio e gente disposta a seguir seu código de condutas. É natural que as pessoas se unam em torno de convicções comuns e a partir daí surjam lideranças políticas. O problema surge quando estas lideranças reconhecidas dentro de um grupo resolvem expandir seu poder político para além do grupo, impondo suas normas de condutas não a quem resolveu por conta própria aderir a elas, mas a quem tem ideologias e deuses completamente diferentes. Neste ponto, não se trata mais de uma questão religiosa, mas de uma questão meramente política. A religião só é religião até ser imposta; depois disso é simplesmente política e pode ser exercida tanto pela força das armas como pelos votos de uma maioria fundamentalista. E o uso do nome de Deus para mascarar o exercício deste poder político é a ferramenta política mais hipócrita que já se inventou, mas tem funcionado muito bem ao longo da história.
O exemplo mais bem sucedido deste exercício de poder político em nome de Deus é o da Igreja Católica Apostólica Romana, que acumulou riquezas e impôs suas normas de condutas para populações espalhadas por todo o mundo em nome de seu Deus, durante vários séculos. A Inquisição e a catequização de índios não foram ações religiosas, mas políticas. E pouco importam as boas ou más intenções daqueles que as realizaram, o fato é que buscavam com elas impor normas de condutas a populações que não a aceitaram por livre e espontânea vontade.
O neopentecostalismo e a bancada teocrática
Na atualidade, o Vaticano perdeu grande parte de seu poder político na Europa e, mesmo no Brasil, onde sempre foi muito forte, tem perdido espaço para o neopentecostalismo que, nos últimos anos, vem acumulando grande poder político e econômico.
Se, por um lado, a ausência da uma liderança unificada dificulta o exercício do poder político por estas novas lideranças, por outro, sua ideologia espiritual favorece bastante a acumulação de riquezas pelos seus pastores. Enquanto a moral católica considera a temperança, a caridade e a humildade como virtudes, o neopentecostalismo está fundado na Teologia da Prosperidade e afirma que os verdadeiros fiéis devem desfrutar de uma excelente situação econômica. Há, é claro, um detalhe: para que Deus conceda ao fiel as benesses materiais, é preciso que este faça um pacto com Ele, oferecendo-Lhe toda sorte de oferendas materiais, dentre as quais se destaca o dízimo. É a chamada Doutrina da Reciprocidade, que viabilizou todas estas rápidas expansões de igrejas neopentecostais nos últimos anos.
Escudados na liberdade religiosa, pastores cobram impostos privados de seus fiéis – o famoso dízimo – e não precisam pagar qualquer imposto ao Estado, pois a Constituição da República garante em seu artigo 150, VI, b, a imunidade tributária a templos de qualquer culto. Verdadeiros impérios econômicos vêm sendo erguidos assim, tal como ocorreu no passado com a Igreja Católica. E, tal como ocorreu no passado também, esse dinheiro vem sendo usado para expandir o poder político dos líderes desta Igreja, seja por meio da aquisição de meios de comunicações (inclusive de redes de televisão), seja pelo financiamento de campanhas para cargos públicos destes líderes que cada vez mais vêm ocupando cargos, especialmente no Parlamento brasileiro.
Como sempre, os novos líderes espirituais afirmam que todos estes investimentos materiais têm como único e exclusivo objetivo a expansão da palavra do Deus deles e de seu código moral, que, como em toda boa religião monoteísta, deve ser universalizado para o “bem de todos”. Ainda que se admita, porém, que não haja interesses pessoais por trás da expansão destes impérios da fé, fato é que o seu principal objetivo declarado é a expansão de seu poder político, açambarcando a cada dia um número maior de fiéis e impondo seu código de condutas a um maior número de pessoas. Mesmo que para isso precise passar por cima do Estado Democrático de Direito que, ao contrário do monoteísmo, não impõe normas unilateralmente e pressupõe o respeito à pluralidade de opiniões.
Do ponto de vista exclusivamente político, o Estado Democrático de Direito é o maior entrave à expansão do império econômico e político das igrejas neopentescostais e de seus bispos. Não é à toa que cada vez mais eles têm buscado conquistar cadeiras do Parlamento. E a bancada teocrática tem se tornado a cada dia uma das principais forças políticas de nosso Congresso, restringindo os direitos fundamentais de quem não acredita em seu Deus em prol da expansão política e econômica de seu império.
A teocracia é incompatível com o Estado Democrático de Direito, dado o autoritarismo inerente ao monoteísmo. Não se realizam votações para saber se é da vontade de Deus receber dízimos ou condenar os homossexuais a passarem a eternidade no inferno. São seres humanos que afirmam isso e que impõem aos outros a palavra de Deus que eles próprios escreveram. E estas são ações políticas e como tais devem ser tratadas.
E é por isso que o Estado Democrático de Direito é, por sua própria natureza, laico. Porque é impossível ser democrático e monoteísta ao mesmo tempo. Assim como é impossível ser candidato a um cargo público e bispo, pastor ou padre ao mesmo tempo. Há um evidente conflito de interesses entre aquele que fala em nome de seu Deus e aquele que pretende falar em nome do povo em meio ao qual nem todos acreditam em seu Deus.
Para minimizar esta incompatibilidade é necessário, ao menos, que se exija que bispos, padres, pastores e outros clérigos se licenciem de suas atividades sacerdotais um ano antes de se candidatarem a cargos públicos. Restrição semelhante já é aplicada pela lei complementar 64/90 a magistrados, diretores de sindicatos e outros cargos públicos, tendo em vista a incompatibilidade de suas funções com uma campanha eleitoral, e poderia perfeitamente ser aplicada também aos sacerdotes de qualquer crença. Projeto de lei neste sentido foi apresentado pela deputada Denise Frossard (PSDB-RJ) na Câmara dos Deputados em 2004 (PLP 216/2004), mas foi arquivado em 2007, pois ainda se encontrava em tramitação no fim da 52ª legislatura e não houve pedido de desarquivamento na legislatura seguinte.
Uma outra iniciativa necessária é limitar a transmissão de programas religiosos em rádios e televisões para no máximo uma hora diária, tal como foi proposto em 1999 (PLS 299/99) pelo senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT). A Constituição da República é explícita em seu artigo 221, ao determinar que a programação das emissoras de rádio e televisão terá, por preferência, finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. É inconcebível que, no Estado laico, concessões públicas de rádio e TV sejam usadas, como são nos dias de hoje, em prol do proselitismo religioso que não raras vezes passa boa parte do tempo solicitando doações financeiras a seus fieis. Um autêntico merchandising da fé, patrocinado pelo Estado que, por definição constitucional, é laico.
Lamentavelmente, porém, há pouca vontade e coragem política dos parlamentares brasileiros de desafiar o poder político e econômico do novo e do velho clero. A esquerda tem sido bastante leniente com as violações do Estado laico e as poucas inciativas para amenizar o problema, como se viu, por mais paradoxal que seja, partiram do conservador PSDB.
O Brasil precisa urgentemente de uma bancada secular no Congresso Nacional para fazer frente à bancada teocrática (que prefere ser chamada de evangélica). Os valores democráticos da laicidade precisam ser reafirmados por parlamentares que não temam desafiar o crescente fundamentalismo religioso que a cada dia ganha espaço na política brasileira. Não se trata de um combate a qualquer religião, mas à política realizada em nome de Deus e que pretende impor seus códigos de condutas conservadores a toda uma população.
A luta pela efetivação do Estado laico é a luta pela democracia. Por leis que sejam ditadas não de cima para baixo por uma autoridade que fala em nome de Deus, mas construídas a partir do diálogo plural e com respeito aos direitos fundamentais. E isto, deus monoteísta nenhum poderá conceder, pois seus mandamentos são – por definição – mandamentos.
Monoteísmo e democracia são ideologias políticas antagônicas. É esta a grande cruzada da religião contra o Estado.
Túlio Vianna
 Túlio Vianna é Professor de Direito Penal dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (2006) e Mestre em Ciências Penais pelaUniversidade Federal de Minas Gerais (2001), onde também se bacharelou (1999).
Autor dos livros Fundamentos de Direito Penal Informático (Forense, 2003) e Transparência pública, opacidade privada(Revan, 2007), este último com tradução para o espanhol publicada na Argentina (Ad-hoc, 2010).

terça-feira, 17 de abril de 2012

Os limites do lulismo


VLADIMIR SAFATLE

Os limites do lulismo


Há alguns anos, o cientista político André Singer cunhou o termo "lulismo" para dar conta do modelo político-econômico implementado no Brasil desde o início do século 21.

Baseado em uma dinâmica de aumento do poder aquisitivo das camadas mais baixas da população por meio do aumento real do salário mínimo, de programas de transferência de renda e de facilidades de crédito para consumo, o lulismo conseguiu criar o fenômeno da "nova classe média".

No plano político, esse aumento do poder aquisitivo da base da pirâmide social foi realizado apoiando-se na constituição de grandes alianças ideologicamente heteróclitas, sob a promessa de que todos ganhariam com os dividendos eleitorais da ascensão social de parcelas expressivas da população.

O resultado foi uma política de baixa capacidade de reforma estrutural e de perpetuação dos impasses políticos do presidencialismo de coalizão brasileiro.
No entanto é bem possível que estejamos no momento de compreensão dos limites do modelo gestado no governo anterior. O aumento exponencial do endividamento das famílias demonstra como elas, atualmente, não têm renda suficiente para dar conta das novas exigências que a ascensão social coloca na mesa.

É fato que o país precisa de uma nova repactuação salarial. As remunerações são, em média, radicalmente baixas e corroídas por gastos que poderiam ser bancados pelo Estado. Por isso, é possível dizer que a próxima etapa do desenvolvimento nacional passe pela recuperação dos salários.

A melhor maneira de fazer isso é por meio de uma certa ação do Estado. Uma família que recebe R$ 3.500 mensais gasta praticamente um terço de sua renda só com educação privada e planos de saúde. Normalmente, tais serviços são de baixa qualidade. Caso fossem fornecidos pelo Estado, tais famílias teriam um ganho de renda que isenção alguma de imposto seria capaz de proporcionar.

Entretanto, a universalização de uma escola pública de qualidade e de um serviço de saúde que realmente funcione não pode ser feita sob a dinâmica do lulismo, pois ela exige investimentos estatais só possíveis pela taxação pesada sobre fortunas, lucros bancários e renda da classe alta. Ou seja, isso exige um aumento de impostos sobre aqueles que vivem de maneira nababesca e que têm lucros milionários no sistema financeiro.

Algo dessa natureza exige, por sua vez, uma mobilização política que está fora do quadro de consensos do lulismo.Porém a força política que poderia pressionar essa nova dinâmica ainda não existe no Brasil. Ela pede uma esquerda que não tenha medo de dizer seu nome.