quinta-feira, 23 de junho de 2011

Duas experiências e um livro

Sírio Possenti

Quando voltei a Ijuí, depois de dois anos em Campinas, onde cursara um mestrado, o editor do jornal local me convidou para escrever um texto sobre o vestibular que se aproximava (sobre a prova de português, claro). Respondi que só faria isso se me desse espaço para, antes, escrever outras coisas sobre saber português e sobre escrita.

Ele aceitou. Fiz uma série de dez colunas. Começava do começo (eu acabara de estudar um pouco de lingüística e estava empolgado): como se fala, como se escreve, como se ensina, como se aprende (ou não), como e o quê a sociedade cobra (cobra mesmo?) dos falantes etc. E o que significa aceitar ou não tais cobranças. Etc. Falava também da prova, mas depois disso tudo.

Criei algumas inimizades na cidade (especialmente entre os professores de português...). O jornal me garantiu o espaço - havia leitores interessados, sim senhor! - e eu continuei escrevendo, mesmo depois do vestibular (a um cavalheiro só interessam causas perdidas, como diz uma personagem de Borges). Um dia, passado um ano, fui a uma loja buscar uma encomenda. Quando o dono viu meu nome no cheque, perguntou se era eu mesmo, o do jornal. E me disse, em seguida, que, antes de ler meus artiguinhos, tinha vergonha de falar. Mas "agora", até ditava!

Achei que tinha valido a pena. E continuo escrevendo sobre questões da mesma natureza, apesar de tudo.

Na mesma época, na mesma faculdade, dava resultados inacreditáveis (literalmente: os outros não acreditavam) uma estratégia de Deonísio da Silva, que estava começando a ensinar literatura. Sempre há diversos detalhes nas propostas que dão certo (até questões de estilo pessoal), mas a dele consistia basicamente em inverter a ordem cronológica habitual nos cursos de letras. Usualmente, começava-se pelas cantigas de amigo e se chegava ao modernismo (o curso - isto é, o manual - acabava em 1922, donde a impressão de que não havia mais literatura no Brasil depois disso!).

Deonísio fazia o inverso: para os calouros, literatura dos autores vivos, especialmente contos, com sua temática e sua linguagem atuais. O tempo passava e ele ia voltando, lendo os clássicos, o cânone etc. O resultado? Os alunos liam em média 10 livros por semestre (e, repito, ninguém acreditava).

O que eu fizera, em escala mais modesta, e sem outro terreno, mais rico de preconceitos, era algo do mesmo tipo: em vez dizer que "falamos mal" ou que "nem sabemos falar", mostrava que falamos, que seguimos regras rigorosas. Dizia também que isso não basta, que vivemos numa sociedade que cobra (cobra mesmo?) certos comportamentos.

Ler literatos cujos nomes não estavam nas antologias, para muitos, não era ler literatura. Deonísio garantia que era. E ia em frente. Ele recusava os clássicos? Não! Só não começava por eles. E sua proposta lhe permitia chegar de fato aos clássicos, com vantagens. É uma pena que ele não acredite que, quando se trata de língua, o melhor caminho é análogo ao dele.

Agora, suponhamos que, no debate sobre a questão do ensino da língua, haja interesse real tanto pela língua quanto pela escola. Então, sugiro aos que estão em posição de adversários dos linguistas que leiam um livro que analisa uma experiência escolar. Durou um pouco mais de um semestre. Os resultados são espantosos. Os alunos de que se trata poderiam ser classificados entre os piores, pelos critérios usuais: pobres, reprovados, moradores da periferia. Da terceira série de então. O livro se chama Redação na escola: e as crianças eram difíceis... A autora é Eglê Franchi.

Leiam. É mais longo do que uma notícia, do que uma página solta, mas leiam, por favor. E tentem imaginar qual poderia ser o resultado, se alunos como aqueles tivessem aulas como aquelas durante 8 ou 9 anos.

Utilidade

Se, um dia, os neurologistas, os psicólogos, os pedagogos e os fonoaudiólogos estudarem lingüística, o número de falsos diagnósticos vai cair brutalmente. Quase não haverá mais disléxicos, porque até há quem diga que o "antigo" rotacismo hoje é dislexia. É como dizer que a Terra estava, sim, imóvel e que começou a girar ao redor do Sol no tempo de Copérnico (por decisão dele).

Dize-me com quem andas...

A polêmica sobre o "livro do MEC" mostrou algumas coisas, entre elas quem estava de qual lado. Foi bom saber que (sem necessariamente apoiar o livro, e até fazendo-lhe objeções) deixaram claro que o livro não pode ser acusado de "ensinar errado" Affonso Romano de Sant'Ana, José Miguel Wisnik, José de Souza Martins, Sérgio Fausto e Silviano Santiago, Ricardo Semler. Convenhamos, é um time respeitável. Além deles, Thaís Nicoletti, Pasquale Cipro Netto e Hélio Schwarstman, ligados à Folha de S. Paulo. A coluna de João Ubaldo no Estadão de 29/05 pode ser posta na mesma contabilidade. Não cito nenhum lingüista por razões óbvias.

Do outro lado estiveram Augusto Nunes, Arnaldo Jabor, Deonísio da Silva, Sérgio Duarte Nogueira, Sardenberg, Merval Pereira, Reinaldo Azevedo, o ínclito José Sarney, algumas funcionárias da VEJA (nenhum tem a ver com a coisa!) e Evanildo Bechara. Também não há nenhum lingüista na tropa (nem poderia, também por razões óbvias) e nenhum representante de relevo nem sua área (de relevo análogo ao dos que estiveram do outro lado, quero dizer) - exceto Bechara. Dou-lhes o benefício da dúvida: eles podem não ter lido o livro. Foi só fofoca, conversa de compadre. E talvez alguma causa escusa.

Ferreira Gullar também esteve com eles. Falou de um livro que não existe (mas sem a classe de Borges) e invocou suas aulas de gramática, como sempre. Por esse critério, não se deveria considerar que Poema Sujo é poesia, pois não tem rimas. E o Poema enterrado? O que é aquilo? Segundo uma tese dele, talvez a melhor de todas, pode-se dizer que é uma boa idéia. Mas não é arte. Se, pelo menos, naquele último cubinho estivesse escrito "envelheça"!

As declarações de Cristóvão Buarque sobre a questão mostraram que Lula podia não saber por que demitia o então Ministro da Educação, mas o ministro devia saber muito bem por que estava sendo demitido.

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.

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