sexta-feira, 3 de junho de 2011

Sopa de letrinhas indigesta


fred

Fred Navarro


Prefiro falá as coisa certa com as palavra errada a falá as coisa errada com as palavra certa.” Patativa do Assaré, poeta popular cearense

O debate sobre os “erros do livro do MEC” aos poucos sai de foco e tende ao esquecimento, até que novo estopim reacenda a discussão sem fim. A confusão entre a gramática e a língua – a única coisa em comum entre 95% dos que se digladiaram sobre o tema na mídia, blogs e redes sociais nas últimas semanas – está por trás do furdunço (barulho, desordem, em bom português).

Em diversos livros, o doutor em Língua Portuguesa pela USP, professor Marcos Bagno, da Universidade de Brasília, abordou essa questão. Aos interessados, não é possível deixar de ler “A Norma Oculta” (2003) e “Português ou Brasileiro? Um Convite à Pesquisa” (2001), ambos da Parábola Editorial.

Nestes livros, aprendemos que o português falado atualmente no Brasil tem cada vez menos ligação com a língua que lhe deu origem, falada em Portugal por pouco mais de 10 milhões de pessoas, enquanto aqui esse total se aproxima dos 200 milhões. Diante deste fato (ou facto, para os neo-puristas), fica fácil imaginar quem influenciará mais o futuro da língua portuguesa, mas os puristas e desinformados insistem em pinçar regras gramaticais conservadas no formol do tempo, ou que se justificam onde foram criadas e onde até hoje são respeitadas, mas que aqui estão superadas.

Nestas regras, fantasiosas, não há misturas de tratamento, nem artigos definidos e indefinidos revezando-se em suas funções, nem adaptações que a própria língua trata de fazer para continuar viva e atuante.

Do ponto de vista linguístico e histórico, segundo o professor Banho, o equívoco primordial que deu origem à eterna confusão entre a famosa “norma oculta” e a língua praticada pelas pessoas no cotidiano, começou no século SI a.C., quando os fundadores da disciplina gramatical “plantaram a semente do preconceito linguístico” ao sacralizarem na cultura ocidental o mito de que existe “erro” na língua, principalmente na falada, se comparada com a da tradição escrita. Muitos não sabem, e poucos se lembram, que o homem fala há pelo menos um milhão de anos, mas só passou a escrever há aproximadamente 10 mil anos, no entorno da velha Mesopotâmia.

A gramática (arte de escrever, em grego) foi criada para estudar os usos literários dos cânones, dos mestres, dos grandes autores, ela é importante e necessária, mas as pessoas comuns continuaram (e continuam até hoje) falando e se comunicando independentemente das regras e dos clássicos, em qualquer parte do planeta.

Querer enquadrar a linguagem de Patativa do Assaré, de João do Vale ou dos cantadores de viola nordestinos ou gaúchos ao palavreado de Eça de Queiroz não dá liga, é um equívoco. Manuel Bandeira escreveu, com sensibilidade e precisão, no poema Libertinagem: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros, vinha da boca do povo, na língua errada do povo, língua certa do povo. Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil..."

O português à brasileira tem palavras de origens latinas arcaicas e modernas, palavras portuguesas, espanholas, flamengas, francesas, italianas, castelhanas, árabes, inglesas, ioruba, nagô, banto, sem mencionar outras línguas e dialetos de povos de origem africana, e muito menos as centenas e centenas de línguas faladas pelos povos nativos quando os portugueses aqui desembarcaram, taxando-os de “índios” (naturais das Índias), outro equívoco que permanece até hoje.

As palavras não têm fronteiras, mas só são incorporadas por determinado povo ou grupo social quando se tornam úteis, quando são cativantes. No Nordeste, por exemplo, palavras de uso cotidiano como alcatifa (carpete), atalaia (posto de vigia ou lugar alto), brote (pão ou bolacha) e tantas outras, vieram de fora, as duas primeiras do Norte da África e a terceira da Holanda. Fora da região, poucos a conhecem, mesmo os tais defensores da “pureza” da língua.

No português do Brasil, volto à lição de Marcos Banho, substantivos atuam como adjetivos, ou o leitor nunca ouviu a expressão “filme cabeça” ou “funcionário fantasma”? Adjetivos funcionam como advérbios, a exemplo de “falar grosso” “escrever claro” ou “gosto de trabalhar direito”. Aqui, as gramáticas dizem que os pronomes possessivos referem-se às pessoas do discurso, atribuindo-lhes a posse de algo, mas no exemplo “Saia da minha frente!” pergunta-se: como alguém pode ter a posse do que está à sua “frente”? Ou no exemplo “Tua ausência me faz sofrer” pergunta-se: uma pessoa pode ter a posse da “ausência” de alguém?

No português do Brasil, volto à lição de Marcos Bagno, substantivos atuam como adjetivos, ou o leitor nunca ouviu a expressão “filme cabeça” ou “funcionário fantasma”? Adjetivos funcionam como advérbios, a exemplo de “falar grosso” “escrever claro” ou “gosto de trabalhar direito”. Aqui, as gramáticas dizem que os pronomes possessivos referem-se às pessoas do discurso, atribuindo-lhes a posse de algo, mas no exemplo “Saia da minha frente!” pergunta-se: como alguém pode ter a posse do que está à sua “frente”? Ou no exemplo “Tua ausência me faz sofrer” pergunta-se: uma pessoa pode ter a posse da “ausência” de alguém?

Mas, se por um milagre esses intelectuais saíssem da poltrona ou do sofá e percorressem o Brasil, e não só o Brasil das capitais, das metrópoles e das praias, e sim o Brasil profundo, no interior dos Estados, de Norte a Sul, compreenderiam que o povo fala certo, sim, e é ele que mantém a língua viva e fascinante.

Por viver em gabinetes e de regras que engoliram sem questionar, não compreendem que o português falado hoje no Brasil já se libertou, na prática, das amarras que o prendiam à língua-mãe. Nos livramos do sotaque dela e aos poucos introduzimos mudanças que alteraram muita coisa, um caminho natural, ocorreu com centenas de línguas ao longo da história da humanidade.

Falar e escrever certo, no Brasil, não é macaquear Camilo Castelo Branco, Camões ou Saramago. Nem mesmo falar como José de Alencar e Machado de Assis. Eles não passam de cânones utilizados pelos gramáticos e dicionaristas. Ninguém no mundo real fala como eles escrevem. Elomar, o músico baiano que não aparece no Dicionário Aurélio, no Dicionário Houaiss nem no Dicionário Caldas Aulete, canta o sertão baiano e nordestino com sensibilidade e elegância, e para isso, quando quer, usa palavras que 95% dos habitantes de fora da região não têm a menor ideia do que significam. Quando cantamos “Saudosa maloca”, temos que nos achar ignorantes só por que meia dúzia de detentores da sabedoria da língua decretaram que assim falamos o “português errado”?

Ah, nossas elites, nossos governantes... Temos uma educação avaliada em 88º lugar no mundo, dentre 128 países, resultado de uma pesquisa anual realizada pela Unesco junto aos governos destes países, e divulgada esta semana. Nossos doutores nunca trouxeram um prêmio Nobel para o país. Nem os literatos, acadêmicos ou não. Talvez isso não tenha importância para eles, mas para o país teria.

Do ponto de vista político, há um claro viés antipopular, fruto do preconceito mencionado anteriormente pelo professor Bagno, nessa elite esbranquiçada (que lamenta não ter olhos azuis) que torce o nariz quando alguém não fala ou escreve igual a ela. Não deixa de ser curioso que seus integrantes cometam erros “cavalares” o tempo todo, na escrita e na fala, sem consciência disso, o que não os impede de desprezar publicamente o porteiro que fala “oxente”.

Para concluir, recomendo a leitura atenta dos livros do professor Bagno, que, ao contrário de um jornalista curioso e apaixonado pelas palavras, como sou, é um estudioso e apaixonado por elas. Faz toda a diferença. Uma citação a mais dele não vai chatear ninguém: “Como toda ciência, também para a ciência da linguagem a simples intuição do leigo e as noções pré-concebidas dos curiosos, por mais bem-intencionados que sejam, não servem como instrumentos confiáveis para navegar no oceano vasto e fundo da linguagem”.


* Fred Navarro, colaborador de Pitacos, é jornalista e escritor. http://pitacos-politicos.zip.net/


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